Sobre ser mulher, resistência e amor em nossas casas

Aquele momento tenso de eleições passou, agora fica a tensão do que vai ser daqui pra frente. E, desde quando todo esse processo começou, venho procurando em mim o significado mais sólido e honesto de palavras que correram em meu corpo feito sangue nesses últimos meses. Resistir, não esmorecer, revolucionar, transformar, transmutar, cuidar, aceitar, lutar, se libertar, amar. Tanto, tanto, tanto que eu nem sei onde estes verbos deixam de ser palavra pra poder ganhar a força cotidiana e insistente de ações urgentes. É isso que venho tentando encontrar em mim, revendo tudo o que tenho feito e tudo mais que posso fazer pra ser com coerência e viver em paz com a consciência de estar fazendo minha parte no todo. Ando explodindo autocríticas, ando sentindo as dores do mundo, ando reconhecendo meus privilégios, ando enfrentando meus preconceitos, ando cansada de ter medo de tudo o que não me representa mais.

E, como toda vez que a gente procura alguma coisa perdida pela sala, começo sempre pela altura que meu olhar alcança.  Sou uma mulher, branca, privilegiada que fala por si. Coisa bem séria que aprendi nestes últimos meses é que precisamos deixar de falar pelos outros, pelas minorias, pelos que tiveram suas vozes abafadas pelas nossas por tanto tempo. Sendo assim, derramo aqui o que é meu, mesmo que isso se espalhe pelo outro, mas aí é ele quem escolhe receber ou não. Estou em dias de faxina interna, jogando baldes de água em tudo o que fiz e acreditei até agora, passando o rodo em excessos e faltas, deixando meu chão limpo e seguro para me perceber de perto, pra enxergar as rachaduras do meu cimento queimado, essas que despistei durante anos com a terra de meus sapatos empoeirados.

Essa mulher que sou precisa resistir à tudo que insiste em desrespeitar sua feminilidade. Precisa honrar ainda mais todas as linhagens ancestrais que a trouxeram até aqui, deixando pra trás o que não lhe pertence e levando adiante a beleza de saberes/memórias valiosas. Essa mulher precisa aceitar suas dores, seus temores, suas falhas, chorar seus mil lutos, assumir seu cansaço, entregar-se ao perdão (inclusive perdoar à ela mesma). Porque ela é a espinha dorsal de uma casa, de uma família, de si. Porque acordar e preparar o café da manhã das crianças, arrumar a casa de pernas pro ar, cuidar para que as roupas estejam limpas, cessar a sede das plantas, ser mãe em toda presença, fazer tudo isso com amor, sentir gratidão pela realidade que se constrói todo dia é um roteiro de resistência. Acima de tudo, reconhecer que nossa emancipação, nosso empoderamento, nossa força feminina também existe dentro do lar, na permanência da casa enquanto ninho revolucionário de ideologias e costumes, laboratório sempre ativo de desenvolvimento humano, o espaço-tempo mais cheio de amor do mundo. Na minha casa eu abrigo meu corpo, minha outra casa, e firmo com amor minha existência. Aqui eu resisto incansavelmente à tudo que não acredito,  buscando ser para as crianças a verdade de viver livre, tentando mostrar que batalhas podem ser travadas com amor ocupando o front.

Essa mulher que sou precisa ouvir mais daqueles que nunca puderam falar, precisa ser mais empática com a dor do outro e não lançar julgamentos sentada na cadeira confortável de seu próprio privilégio. Escancarar o peito e tirar de lá preconceitos oprimidos pela vergonha de sentir preconceito.  Tentar expandir esses exercício necessários para seus filhos e ancorar neles a consciência de igualdade e totalidade, seja de raça, gênero, condição social, o que for. Ela tem que se apressar pra conseguir trazer o mundo lá fora pra encontrar o daqui de dentro e, assim, explodir tudo para deixar nascer o equilíbrio entre eles. Esse novo mundo que é uma utopia, essa utopia que é o que nos move pela esperança de dias e pessoas melhores.

Essa mulher precisa cuidar mais dos seus e de si mesma, vestir a roupa florida do zelo, da atenção, da doçura, do afeto nas palavras, nas ações, nos pensamentos, nas transformações. Entender que a não conexão com a natureza, com seus ciclos menstruais, com as luas, com a terra, com seu coração e seu corpo, é um vazio que se alastra e esmorece tudo. Somos filhas da terra, carregamos um ventre gerador de vidas e mantenedor de memórias ancestrais. E é difícil sim, cuidar com amor de si para poder cuidar de tanto mais, saber se ouvir e se respeitar, poder ser a mulher que se orgulha de ser. Mas sabemos ser muitas, somos infinitas, e talvez por isso o universo nos deu tanto para carregar e florir pelo caminho. Temo-nos umas às outras e isso é forte por demais!

Essa mulher precisa se libertar de si mesma, de anos de opressão, de desrespeitos, de diminuições, de desaforos, de patriarcado, de machismos velados, de abusos físicos e emocionais, de assédios morais. Eu preciso me libertar dessa grito enrustido por liberdade, como se agora fosse a hora de abrir a porta de casa e escancarar a janela sem medo do que possa entrar, apenas pensando em espaços grandes pra esse grito engasgado sair. Jogar no vento a dependência emocional de relações românticas, enraizando em mim a força do pilar que sou, aceitando amores que me enfeitam e não me quebram ao meio. Varrer pra fora de casa o medo de não dar conta de tanto, deixando apenas a certeza confortável de que pedir ajuda é normal e eu me permito sim. Tirar das prateleiras do quarto todo o receio de não ser aceita enquanto mulherão que sou, de ser julgada pela mãe que consigo ser, antes que ele se petrifique e vire culpa agarrada no meu lar. A liberdade é uma parada que a gente só entende quando para de conjugar seu verbo e passa a ter coragem de experimentá-la, mesmo que em doses homeopáticas.

Essa mulher precisa, dentre tanta coisa, amar sem bordas, sem fronteiras, sem arestas. Sim, ir de encontro à esse amor genuíno que tantos sábios e deuses já falaram, mas que poucos de nós conseguiram acessar. Esse amor sem rótulo, sem tamanho, sem peculiaridades, sem romantismos limitantes, sem medo. Amar de peito aberto, de ouvido escancarado, de palavra verdadeira, de corpo inteiro, de alma limpa, de intenção honesta, de mãos juntas, de pés firmes. Talvez amar seja a mais bonita e eficiente maneira de resistir e revolucionar, penso eu. E não há campo mais bonito pra enraizar o amor e fazê-lo crescer sem fim do que a casa da gente, a família. Aqui temos a chance de nos transformar em quem quisermos, de nos fortalecer para toda e qualquer revolução, de sermos os guerreiros que a vida exige que sejamos, de acolhermos e sermos acolhidos em nossos medos, de irmos e virmos quando nos convém. A casa e a família serão sempre nossas alcovas, nossos casulos para onde voltaremos quando precisarmos respirar em descanso. Essa mulher que sou, uma lagarta em transformação, tem uma revolução silenciosa e amorosa explodindo no peito. Desconfio que ela ainda não saiba o quão dura essa resiliência possa se mostrar, mas tenho certeza de que ela acredita em mundos melhores e isso basta pra amar cada batalha ganhada ou perdida na intensa jornada de coexistir em paz com o universo inteiro.

 

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