Abrigo de Vida

Ela entrou, me olhou. Examinou cada pedaço meu. Me tocou, me questionou, imaginou diversas coisas dentro de mim, em infinitas posições. Abriu uns sorrisos e olhares, alguns pensamentos que não decifrei.

Depois voltou com um homem e uma menina. Me olharam, fizeram planos comigo. Só observei, quieta. Que escolha eu tinha? Eles me escolheram.

Voltaram depois de uns dias. Lavaram-me inteira. Água, muita água de cima a baixo. Ensaboaram-me, me esfregaram. Fecharam a porta e foram embora.

No dia seguinte chegou um caminhão de coisas. Preencheram-me. Móveis, caixas, objetos. Achei que nunca mais fosse acabar. Demoraram dois dias para colocar ordem em tudo.

Mudaram as minhas cores. Cinza, azul, rosa. Me furaram em diversos pontos, penduraram coisas nos furos.
Tive medo. O desconhecido nos dá medo. Mas daí a menininha apareceu novamente e olhou fascinada para a parte que me pintaram de rosa. Deu pulos de alegria, rodeou todo o espaço. Gargalhei junto com ela.

E daí os dias seguiram. Me colocaram cortinas coloridas, desenhos nas paredes, plantas em vasos. Cozinharam dentro de mim, um cheiro bom de tempero fritando na panela. Comeram alegres, contando uns aos outros sobre seu dia. Várias conversas engraçadas.
Não vou mentir, havia brigas e gritos às vezes. Acho que os humanos se desentendem bastante. Respiro aliviada em toda briga quando eu me lembro de que os momentos de amor são mais corriqueiros, ufa.

Eu vi um casal simpático conversar, assistir TV juntos, dormirem abraçados. Vi uma menina pequena perambular entre meus espaços com muita alegria, com diversos brinquedos coloridos. Os vi gargalharem, chorarem, seguirem uma rotina. Vi uma mãe e uma filha rodopiarem na sala dançando uma música vibrante. Recebi os amigos, conheci a família. Fui cenário de comemorações, de brindes, de êxtase. Eu acolhi, abriguei, protegi.

Um dia, pintaram uma árvore em uma das minhas paredes. Foi decorada com moldurinhas e fotos. Ela olhou satisfeita e pensou que poderia ter um bebê ali, debaixo daquela árvore.

AÍ eu vi uma criança ser gerada. E consumada também, não vou mentir, risos. Vi uma barriga crescer junto com uma quantidade absurda de roupinhas minúsculas. Me prepararam inteira para aquele bebê nascer ali mesmo, dentro de mim. Uma piscina de plástico. Uma mangueira mil vezes maior da que eu tinha no chuveiro. Móveis arrastados.

Quando o dia chegou, ela gritava e sorria. Recebi algumas pessoas que pareciam ser muito queridas. Havia carros diferentes em minha garagem. E ficou um vai e vêm gostoso, risadas, choros, gritos e rituais. Um sobe e desce das minhas escadas, umas reboladas e agachamento segurando firme em uma mureta minha. Havia comida, muita comida o tempo todo. Revezamento de espaço na mesa. Era tanta gente ficando aqui por tanto tempo que um dos meus vasos ficou entupido. As casas ao meu lado ouviam assustadas. Os humanos vizinhos apareciam indagando se estava tudo bem e saíam rapidamente com a resposta feliz: “Há um bebê nascendo aqui. Sim, aqui mesmo. Está tudo bem, é que dói, sabe?”. E eu vi doer, mesmo.

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Passou uma noite inteira com esse povo aqui dentro. Ninguém dormiu muito bem. Confabularam histórias de outros bebês nascendo em outras casas. Ouvi ansiosa, grata por poder receber um bebê também.

Mas no outro dia, em alguma hora ficou tudo muito conturbado e se foram, todos. Fiquei sem entender, cadê o bebê? Pra onde eles vão? Eu quero ver o bebê. A noite passou. Meu espaço alegre e cheio de gente, gritos e risadas, virou um espaço vazio. Uma avó preocupada aguardando. As luzes apagadas. A garagem vazia. Silêncio.

O dia passou também. E no outro, o carro parou em minha garagem. Observei atenta e aflita. Ela saiu. E o bebê! O bebê foi da barriga para o colo! E eu não vi, como foi planejado. Mas ok, o bebê está ali. Entre bebê, venha conhecer a sua casa, o seu lar.

E então o que eu testemunhei foi incrível. Quase indescritível. Os três viraram quatro. Uma família crescida, completa, se formando ali, bem na minha frente, entre meus cômodos. Um bebê sendo alimentado em sua mãe encostada em minhas paredes.
Um novo membro para meu interior, que me preenche ainda de mais alegria, de mais amor.
Uma menina virando irmã mais velha, um casal com duas filhas.
Neste momento eu compreendi que eu sou uma casa feliz. Um lar alegre que acolhe uma família, é palco de histórias fantásticas, é espaço de vida. A vida acontece aqui, dentro de mim. Sou aconchego. Sou o teto. Sou refúgio.
Estou ansiosíssima para ver a vida crescer e acontecer aqui dentro, dia após dia.

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Fotos de Cristiane Pereira e Rafaela Duarte durante um parto real.

18 COMMENTS

  1. Olha, não sei se é pq estou bem sensível hj mas estas postagens que recebi me encheram os olhos de lágrimas… Tocaram direto no coração! Gratidão gurias! Gratidão por tanta generosidade! Grande abraço para as duas, a dona do ACQMAQ e a dona do relato!

  2. Oi Anne,

    Sempre acompanhei teus passos aqui no blog querido da Ana.E que história linda!Quanto amor nessas palavras, quanta alegria.Não imagino alegria maior pra todo mundo sentir nas palavras tamanho carinho.Isso é o que de faz uma casa, um lar.
    Amei.
    Beijão

  3. Nossa que texto lindo, tão carinhoso, tão real, que casa espetacular, que família calorosa!
    Anne desejo muita felicidade e harmonia pra sua família linda!

  4. Que lindos texto, fotos e mensagem!! Nunca imaginei minha casa pelo ângulo dela, mas confesso que achei incrível! Minha casinha já viu muita coisa!! Já é uma relação de 15 anos!

  5. Anne, bom dia!

    Lindo demais seu post, gostaria de ter sua coragem quando eu tiver os meus filhos, você é um exemplo, seu lar é um exemplo! amei sua casa todos os detalhes!!
    Amei os quadrinhos amarelos, onde voce encontrou as imagem para impressao? ou comprou assim?

    um beijo com carinho!

  6. Nossa, que delicadeza. Chorei. Que relato lindo! Quero que quando chegar minha hora o bebê nasça com tanto amor, respeito e serenidade! Ainda tô na luta de convencer o marido a ter um parto domiciliar! Muita luz pra essa família!

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